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BOLETIM # 01 | POVOS INDÍGENAS E COVID-19: LESTE NORDESTE

Atualizado: 21 de ago. de 2020

03 DE JULHO DE 2020 | Por Apoinme


Neste boletim apresentamos um balanço de dois meses (Maio e Junho/2020) de atividades de monitoramento dos impactos e do enfrentamento da COVID-19 entre os povos indígenas nos dez estados que compõem a área de abrangência da Apoinme (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo).


confira o boletim em áudio:


Se me der a folha certa

E eu cantar como aprendi

Vou livrar a Terra inteira

De tudo que é ruim

Eu sou o dono da terra

Eu sou o caboclo daqui

(Kirimurê – J. Velloso)



A situação das Terras Indígenas na Região Leste-Nordeste


Nesta região existem 86 povos indígenas que vivem em mais de 200 Terras Indígenas(TIs) em diferentes situações territoriais rurais e urbanas, que somavam uma população de 213.691 pessoas em 2010 (IBGE), das quais apenas 134.016 são hoje atendidas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde através dos Distritos Especiais de Saúde Indígena, os Dseis.


Apesar da significativa quantidade de Terras Indígenas, estas não constituem áreas de grande tamanho e, geralmente, possuem uma população numerosa e concentrada. Os processos de regularização fundiária destas TIs encontram-se em diferentes estágios administrativos e muitas sequer aparecem nas listas de terras a identificar pela Funai. Todas as terras apresentam altos níveis de degradação ambiental provocadas por décadas, ou mesmo séculos, de exploração do agronegócio, da pecuária, de empreendimentos dentro e no entorno de Terras, entre outras situações que tornam vulneráveis esses povos e seus modos de vida. A urbanização avança em muitas TIs. Algumas estão em áreas de intenso fluxo turístico e são cortadas ou facilmente acessadas por rodovias estaduais e federais de grande movimentação, o que permite um fluxo constante de pessoas nestas áreas. Tudo isso marca um quadro generalizado de conflitos fundiários e provoca imensas dificuldades na atenção à saúde indígena. No contexto da pandemia do coronavírus, para a maior parte destes territórios, é quase impossível se limitar o acesso de pessoas por períodos muito longos.


O impacto da pandemia


A contaminação pela Covid-19 atinge de modo desigual as terras indígenas nessa região, sendo mais prevalente em contextos com elevado nível de urbanização, fácil acesso por rodovias e com processos de demarcações inconclusos, a exemplo dos Tremembé(CE), Tapeba (CE), Potiguara (PB) e Fulni-ô (PE). Nestes povos a contaminação ultrapassa a marca de 100 casos acumulados em dois meses, sendo os três últimos com registros de óbitos. Há incidência significativa de contaminação também entre os povos Anacé (CE), Potiguara Catu (RN), Kariri-Xokó (AL), Tupinambá (BA); Pataxó (BA), Tupiniquim (ES), Xukuru-Kariri (AL) e nas aldeias urbanas do município de Crateús (CE).


A disseminação da Covid-19 tem ocorrido principalmente por via terrestre, seguindo o eixo das principais rodovias da região, como: a BR-101, a BR-232, a CE-085,a BR-423 e a BR-020. O Rio São Francisco parece funcionar como uma barreira efetiva à contaminação na fronteira entre Pernambuco e Bahia, uma vez que existem casos nas terras indígenas no lado pernambucano do rio, mas não no lado baiano. Outras regiões sem casos ou com baixa prevalência nas TIs são o Oeste da Bahia, Cerrado Piauiense, Minas Gerais, Sertões do Ceará e do Rio Grande do Norte.


Infelizmente, a curva de contaminação na região como um todo continua ascendente, demonstrando as dificuldades para evitar a propagação da doença, bem como a intensificação do processo de interiorização da mesma. No momento, acontecem novos casos em aldeias e povos ainda não atingidos, que representam um sério risco de novos surtos em terras indígenas onde a atenção e o controle epidemiológico podem ter relaxado um pouco após semanas de intensa mobilização.


A distância entre as curvas de contaminação e recuperação segue aumentando ao longo das semanas, conforme podemos observar nos gráficos. Nesse sentido, a pandemia ainda está longe de atingir seu nível máximo nas terras indígenas da região. E, ainda que o número de indígenas recuperados da Covid-19 tenda a crescer com o passar do tempo, isso não significa que essas pessoas não possam vir a contrair a doença uma segunda vez. Assim, a manutenção de medidas de proteção e controle no acesso às aldeias é fundamental para a continuidade do combate à disseminação do coronavírus entre os povos indígenas.


Iniciativas indígenas de contenção da pandemia


Iniciativas indígenas de autoproteção de seus territórios com a adoção de protocolos de segurança, fechamento das aldeias e manutenção de barreiras sanitárias tem sido importantes medidas de contenção e retardo da disseminação do vírus. Em algumas terras os povos indígenas têm conseguido bastante apoio de prefeituras, da Funai e da Sesai. Contudo, noutras situações, há enorme desencontro de iniciativas e mesmo resistência e retaliação com uso da força policial contra as medidas comunitárias de autoproteção, como foi o caso dos Tupinambá da Serra do Padeiro (BA).


Vidas não podem ser só números


Até 30 de junho o movimento indígena registrou 30 óbitos de indígenas na região, conforme o seguinte quantitativo: Pernambuco - 12; Ceará - 08; Alagoas - 03; Rio Grande do Norte - 03; Paraíba - 02; Bahia - 01 e Espírito Santo - 01. Desse total, a Sesai só contabiliza 14 óbitos. Alguns ainda são tidos pelo órgão como em investigação e outros não foram notificados por se tratar de indígenas que viviam fora das terras indígenas ou de grupos não cadastrados pela Sesai. Esse descompasso entre os dados oficiais e os dados do movimento indígena evidenciam que parcela significativa da população indígena ainda não consegue acessar plenamente os seus direitos constitucionais, sendo dever do estado ampliar e diversificar a atenção das políticas públicas voltadas aos povos indígenas.


A perda dessas pessoas para a Covid-19 não pode ser tratada apenas como uma questão numérica, pois o impacto de seus falecimentos nas comunidades indígenas é grande, representando enorme sofrimento coletivo e a perda de referenciais culturais, de memória e de organização social importantes. Nesse sentido, a atenção, o resguardo e um maior cuidado com os mais velhos constitui um dos maiores desafios no enfrentamento da pandemia entre os povos indígenas.


O monitoramento da propagação da Covid-19 nas aldeias tem sido muito dificultado em diversos estados pela falta de transparência nas informações fornecidas por alguns Distritos Sanitários que, quando lançam seus boletins, omitem dados específicos de etnia e aldeias. Alegam que, ao divulgar esses dados, poderiam estar expondo os povos ao risco de sofrerem preconceito. Contudo, essas informações são sonegadas até mesmo às lideranças indígenas e grupos de pesquisa das universidades, que tem feito esforços para compreender os modos como o vírus se dissemina e a doença se comporta. A incongruência entre os dados provenientes do Estado e do movimento indígena exibem não apenas formas distintas de quantificar os impactos da Covid-19 entre estas populações, mas constitui uma questão central no que se refere às responsabilidades do Estado, a um iminente genocídio e à efetivação de planos de ação eficazes para combater a disseminação que considerem as especificidades culturais destes povos.


Povos indígenas no contexto urbano e não atendidos pelo Estado


Nem todos os povos indígenas na região são atendidos plenamente pelos órgãos indigenistas (Funai e Sesai), sendo mais grave a não inclusão nas políticas de saúde diferenciada de todos os povos indígenas nos estados do Piauí e Rio Grande do Norte e de alguns povos no Ceará, Paraíba, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais. Com isso, essas etnias são atendidas apenas pelas secretarias municipais de saúde, que não tem se preocupado ou podido operar recortes de atuação especifica para os povos indígenas.


Também merece preocupação a situação de famílias indígenas de povos já atendidos, mas que vivem em contextos fora das Terras Indígenas, especialmente em áreas urbanas nas regiões metropolitanas dos respectivos estados. Segundo informações do movimento indígena, tem ocorrido casos de contaminação grave e mesmo de óbitos na Região Metropolitana de Natal (RN), com dois óbitos de Potiguara Mendonça; e na Região Metropolitana do Recife (PE) onde três idosos do povo Xukuru e um indígena Warao vieram a falecer vítimas de Covid-19.


Outra situação preocupante é a do povo Warao, indígenas venezuelanos em situação de refúgio humanitário no Brasil. Esta população é bastante numerosa e atualmente encontra-se distribuída em grupos familiares em abrigos e casas alugadas em diversas cidades de grande porte da região, como: Teresina (PI), Mossoró (RN), Natal (RN), Campina Grande (PB), João Pessoa (PB), Recife (PE), Jaboatão dos Guararapes (PE), Feira de Santana (BA) e Belo Horizonte (MG) até onde pudemos levantar. Há registros de alto índice de contaminação nos grupos que estão em Teresina (78 pessoas) e João Pessoa (68 pessoas), com casos graves em Teresina, João Pessoa, Campina Grande e Recife. Os Warao tem recebido atenção variável dos órgãos públicos, de organizações religiosas e de entidades da sociedade civil. Há relatos de sérias dificuldades e conflitos em alguns dos abrigos, decorrentes da falta de entendimento da cultura Warao e de violações dos direitos indígenas.


Uma ampla rede de solidariedade


Por fim, destacamos que tem sido muito importante a organização de redes de atenção, apoio e solidariedade aos povos indígenas. Essas redes tem sido compostas pelos próprios povos indígenas mobilizados a partir de suas aldeias e organizações (Apoinme, Mupoíba, Fepoince, Apirn, Cojipe, Copipe, entre outras), em parcerias múltiplas com organizações indigenistas – destacadamente a Anaí – e com órgãos governamentais, universidades públicas, organizações civis e religiosas.


São iniciativas diversificadas, que tem apoiado ações como as barreiras sanitárias, a testagem rápida, a distribuição de cestas básicas e kits de máscaras e de produtos de higiene, campanhas de prevenção e arrecadação de recursos financeiros e donativos. Enquanto as esferas centrais do governo federal têm adotado uma postura negacionista do impacto da Covid-19 nas terras indígenas, agindo inclusive para bloquear o acesso à informação, existe uma árdua atividade laboral sendo feita nas terras indígenas por parte de servidores indígenas e não-indígenas dedicados a cumprir os preceitos constitucionais e legais em seus respectivos postos de trabalho.


Os dados apresentados nesse boletim são o resultado da soma de esforços de diversas organizações indígenas, indigenistas e de pesquisa das universidades públicas da região de abrangência da APOINME. São informações coletadas diretamente junto ao movimento indígena, nas aldeias e nos boletins epidemiológicos municipais, estaduais e dos Dsei/Sesai. Para tanto, contamos também com a colaboração de um grande número de estudantes indígenas universitários que, desde as suas casas, tem envidado esforços para a mobilização e proteção de suas comunidades.



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